Entrevista
Para onde vai a pós-graduação brasileira?
Coryntho Baldez
Debora Foguel, pró-reitora de Pós-Graduação
e Pesquisa da UFRJ
A formação de novos mestres no Brasil cresceu 10,7% ao ano entre 1996 e 2009, especialmente pela expansão de vagas nas instituições privadas. No ano de 1996, elas formavam 13,3% dos mestres brasileiros. Em 2009, já respondiam por 22,4% dos títulos concedidos.
Os dados estão no estudo “Mestres 2012”, divulgado em 24 de abril pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), órgão ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. O novo levantamento e o relatório “Doutores 2010”, lançado há três anos, indicam que o número de mestres e doutores cresceu, em média, 321% nos últimos 15 anos.
Embora ressalte que o Brasil ainda tenha apenas 0,5% de jovens na idade correta fazendo mestrado e doutorado, a pró-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa da UFRJ, Debora Foguel, avalia como positivo o aumento do número de programas. Segundo ela, o país precisa de pessoal qualificado para acessar e decodificar o conhecimento produzido pela sociedade moderna, revertendo-o para o fortalecimento das pesquisas nacionais.
Nesta entrevista ao UFRJ Plural, a pesquisadora associa o crescimento dos programas de pós-graduação ao momento vivido pelo Brasil de expansão das vagas no ensino superior. “Há uma massa de estudantes recém-formada que começa a se deparar com as exigências do mercado de trabalho. Eles sentem necessidade de continuar a se qualificar, e a pós-graduação é um dos caminhos”, sublinha a professora titular do Instituto de Bioquímica Médica (IBqM).
Debora Foguel lembra que a contribuição expressiva das universidades particulares na formação de novos mestres e doutores ocorre por meio de cursos – “embora necessários e importantes” – de menor custo, como Direito ou Administração. Na sua avaliação, o Brasil deve, agora, voltar a atenção para o sistema público de pós-graduação. “Precisamos de mais bolsas para programas de mestrado e doutorado que estão no limbo, e aumentar os investimentos na infraestrutura dos laboratórios”, defende.
UFRJ Plural – Como a senhora avalia o expressivo crescimento do número de mestres e doutores no Brasil, como indicou a pesquisa do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos do Ministério da Ciência e Tecnologia?
Debora Foguel – De forma positiva. Ele faz parte de uma política nacional para estimular o crescimento do sistema de pós-graduação no país, algo que está relacionado às iniciativas das nossas duas maiores agências, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Também não podemos deixar de considerar a atuação das Faps (Fundações de Amparo à Pesquisa dos estados) em várias regiões do Brasil. No Rio de Janeiro, por exemplo, houve um crescimento fantástico do incremento à pesquisa por parte da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro). Essa ação sinérgica entre as Faps, o CNPq e a Capes resultou em um amplo apoio aos pesquisadores e instituições, refletindo-se no crescimento virtuoso dos cursos de pós-graduação, que é uma necessidade do país.
UFRJ Plural – E qual a posição do Brasil comparativamente a outros países quanto ao número de doutores, por exemplo?
Debora Foguel – A nossa posição é muito inferior à dos países desenvolvidos. Mas mesmo em relação a países da América Latina, como a Argentina, estamos muito atrasados. Ter doutores é importante porque hoje a quantidade de conhecimento gerada no mundo é enorme. De certa maneira, precisamos de doutores até para acessar e decodificar toda essa gama de conhecimento, a fim aproveitá-lo para o crescimento das nossas próprias pesquisas.
UFRJ Plural – O estudo sobre os mestres brasileiros, divulgado no dia 24 de abril, mostra que a participação das instituições particulares na formação nacional de mestres cresceu de 13,3% em 1996 para 22,4% em 2009, quase empatando com as universidades estaduais, que contribuíram com 25%. Como as particulares nunca tiveram tradição em pesquisa e pós-graduação, essa tendência pode representar, em médio prazo, uma queda da qualidade na formação dos nossos mestres e doutores?
Debora Foguel – No Brasil, temos um quadro interessante. Na graduação, as instituições privadas respondem por cerca de 75% dos alunos matriculados e as públicas por 25%. Ou seja, a maioria absoluta dos alunos está cursando universidades privadas, muito por conta do incentivo de programas que o governo federal vem acertadamente desenvolvendo, como o Prouni. Na pós-graduação, o cenário é exatamente o contrário. A maior parte dos alunos está em instituições públicas. Mas, certamente, a qualidade do ensino praticada em um ou outro tipo de instituição é muito diferente e as universidades públicas apresentam melhor qualidade,de forma geral. Aqui, não posso deixar de me referir à célebre frase do saudoso professor Carlos Chagas, que disse que na universidade ‘se ensina porque se pesquisa’. Portanto, existe uma correlação forte entre qualidade do ensino e pesquisa. A prática da pesquisa acaba ‘respingando’ para dentro da sala de aula e aumentando a qualidade daquilo que se ensina. Mas, de fato, hoje existe um grande movimento no país em torno da formação de pessoal. Essa grande massa de estudantes que, há poucos anos, ingressou no ensino superior começa a se formar e se depara com as exigências do mercado de trabalho. Esses recém-formados, agora, sentem a necessidade de continuar a se qualificar, e a pós-graduação é um dos caminhos. Nesse sentido, as universidades privadas veem nisso um bom filão.
UFRJ Plural – E de que maneira esse fenômeno, que vem a reboque do momento do país, pode se refletir no sistema de pós-graduação?
Debora Foguel – De fato, quando olhamos as instituições particulares, constatamos esse crescimento acentuado, como revela a pesquisa do CGEE. No entanto, os tipos de cursos que essas universidades criaram, sem nenhum demérito, são todos nas áreas das ciências sociais e ciências humanas aplicadas. São cursos importantes e necessários, mas menos custosos, do ponto de vista econômico. Um curso de Bioquímica, por exemplo, requer laboratórios, insumos, equipamentos, pessoal técnico qualificado. Em Direito ou Administração, por exemplo, os custos da pesquisa são menores. Repete-se na pós-graduação o que já é uma prática nos cursos de graduação das particulares. Essa continuidade tem relação direta com a lógica do custo/benefício própria das instituições privadas.
UFRJ Plural – O sistema público federal e estadual continua a ser fundamental para garantir a qualidade da pesquisa no país?
Debora Foguel – Não tenho nenhuma dúvida de que o sistema público deve merecer cada vez mais apoio dos governos. Existem cursos que jamais vão nascer nas universidades particulares. E as universidades públicas desempenham um papel social de enorme relevância no nosso país. É muito gratificante ver alunos de famílias mais humildes que, pela primeira vez, chegam à universidade pública para receber um ensino de qualidade.
UFRJ Plural – Aparentemente, o estudo mostra que o sistema brasileiro de pós-graduação está se adaptando às demandas de curto prazo da economia e do mercado, com a criação de cursos de mestrado em diversas áreas, inclusive em modalidades como o mestrado profissional. Qual o significado dessa maior proximidade do sistema de pós-graduação com o mercado?
Debora Foguel – Com a minha experiência de dois anos à frente da Pró-reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da UFRJ, observei que houve um crescimento bastante expressivo dos programas de mestrado profissional que encaminhamos para registro na Capes. Esses cursos são mais recentes e começaram a ter um crescimento assustador, de fato, nos últimos anos. Isso faz um pouco de sentido com o novo momento que o país experimenta e vive.
UFRJ Plural – Qual a sua visão sobre esse tipo de mestrado?
Debora Foguel – Alguns pesquisadores e acadêmicos são refratários a essa modalidade. Eu já tive oportunidade de acompanhar cursos de mestrado profissional na área da saúde e passei a compreender melhor como eles funcionam. Eles se destinam a alguém que já está no mercado de trabalho, já tem uma profissão, daí deriva a sua denominação. Não são mestrados profissionalizantes, como erroneamente alguns consideram, porque não formam profissionais para atuar em determinado ramo do mercado. Eles são dirigidos ao profissional que tem um problema, um gargalo qualquer em sua atividade numa empresa ou mesmo num instituto de pesquisa, que ele precisa dar conta. Nesse sentido, ele busca a universidade em busca dessa resposta. Na área da Saúde, em geral, o aluno que procura esses cursos já traz consigo a pergunta para o orientador.
UFRJ Plural – E como avaliá-los diante da realidade e dos desafios do Brasil?
Debora Foguel – Eles têm o seu papel, que não deixa de ser importante. Na realidade, é tudo muito novo. Estamos experimentando e vejo como iniciativa interessante para este momento em que vivemos. As pessoas estão nas suas frentes de trabalho, querendo crescer e se aperfeiçoar, e nas suas tarefas do dia a dia existem gargalos. E quando os profissionais que estão na empresa ou em escolas de rede pública voltam à universidade para tentar resolvê-lo, isso permite um encontro da academia com a empresa e com a escola. Não podemos virar as costas para esses compromissos.
UFRJ Plural – A avaliação da produtividade acadêmica pelos órgãos de incentivo tende a valorizar mais os critérios quantitativos, o que vem se refletindo no ritmo acelerado de crescimento dos cursos de pós-graduação. Essa orientação pode reduzir a possibilidade do surgimento de projetos capazes de fazer avançar as fronteiras do conhecimento?
Debora Foguel – Essa é uma discussão bastante atual. Na semana passada, o professor Fernando Reinach, da Universidade de São Paulo (USP), publicou um artigo interessante no jornal O Estado de São Paulo, sobre Salami Science. É uma prática que consiste em fatiar uma pesquisa em diversas partes, como rodelas de um salame, para publicar um grande número de artigos científicos. Não se aguarda o acúmulo de massa crítica, de dados consistentes e completos para a publicação do estudo. Isso acontece pela pressão que o critério quantitativo exerce sobre os pesquisadores. Mas tudo no Brasil relacionado à academia é muito novo. A mais velha universidade é a nossa, que ainda não completou 100 anos. Então, considero que é exigir demais que o sistema universitário de um país como o nosso já nasça pronto e acabado. Ele tem que crescer, experimentar, incluir e, ainda por cima, se preocupar em produzir pesquisas para publicar em revistas de alto impacto científico. O momento de expansão que experimentamos, mais focado na quantidade, levou o Brasil à décima terceira posição no cenário mundial em produção acadêmica. O desejável seria trabalhar em conjunto a quantidade e a qualidade, mas na prática isso não acontece.
UFRJ Plural – E daqui para a frente, qual será a tendência da nossa pesquisa?
Debora Foguel – Claro que, se produzimos mais rodelas do salame, aumentamos a quantidade em detrimento da qualidade. Acho que, agora, o Brasil está num momento em que pode pensar em dar um salto na qualidade da sua pesquisa. Em qualquer fórum ou espaço de discussão, percebemos um desejo forte de superar a prática da ciência do salame. Mas é preciso registrar que a quantidade é muito fácil de contabilizar, a qualidade não. A questão é como fazer a análise da qualidade. Como julgar todos os projetos de pesquisa, os programas de pós-graduação, as instituições? Que critérios poderemos utilizar além do numerológico? Está posto um novo desafio. Podemos olhar o impacto das revistas em que o trabalho foi publicado, quantas citações dela foram feitas. Esses, a principio, são indicadores para a qualidade, mas eles também estão sujeitos a críticas. Devemos fazer esse movimento de caminhar para a qualidade, mas é preciso definir como fazer isso, uma vez que todo e qualquer processo de avaliação é subjetivo e os indicadores sujeitos a críticas.
UFRJ Plural – Em números absolutos, as federais ainda formam mais mestres, chegando a 20.142 em 2009, contra 8.696 das instituições privadas e 9.712 das estaduais, de acordo com o estudo do CGEE. Como aperfeiçoar as políticas públicas voltadas para esse sistema de pós-graduação que vem contribuindo há quase 50 anos para o desenvolvimento nacional?
Debora Foguel – Na condição de pró-reitora, tenho acompanhado com preocupação a diminuição do aporte de bolsas de pós-graduação. Nos últimos dois anos, houve cortes grandes no orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. O primeiro corte foi de um bilhão e, depois, de um bilhão e meio de reais. Isso se reflete, obviamente, entre outras coisas, nas bolsas. O CNPq é um órgão que, nos últimos anos, quase não aportou bolsas para cursos novos de pós-graduação. Nos últimos quatro anos, a UFRJ criou uma média de quase seis programas de pós-graduação por ano que não têm aporte de bolsas do CNPq. A Capes tenta compensar, mas tem limites. Há também um lote de vagas para cursos emergentes oferecido pela Faperj, mas essas iniciativas não são suficientes. Vários coordenadores de cursos da UFRJ que me procuram estão muito preocupados ou mesmo desiludidos. Eles fazem seleções, aprovam dez ou 15 alunos, mas só há bolsas para os três ou quatro primeiros colocados. Essa é uma questão que me preocupa bastante. Muitos programas de conceito 3, 4 e 5 estão no limbo, dependem muito do aporte de bolsas. E não podemos esquecer que o Plano Nacional de Pós-Graduação preconiza aumento firme de mestres e doutores formados. Precisamos de ‘alimento’ e estimulo para esses alunos. Bolsa é um desses ‘alimentos’.
UFRJ Plural – Além das bolsas, que iniciativas seriam importantes, hoje, para aperfeiçoar o sistema público de pós-graduação?
Debora Foguel – Ao lado da ampliação das bolsas, acho necessário um Reuni para a pós-graduação. Como todos sabem, o Reuni é um programa do governo federal de investimentos para a criação de novas vagas na graduação. Se nos envergonhamos de ter em torno de 17% de jovens entre 18 e 24 anos nas universidades, é precisão alertar que temos apenas 0,5% de jovens na idade correta fazendo pós-graduação. Não estou dizendo que todos os jovens desse país devem cursar a pós-graduação. Até seria o meu sonho. Mas ninguém vai me convencer de que 0,5% é um número decente. As universidades públicas precisam de programas de apoio para a reestruturação dos seus laboratórios de pesquisa, precarizados por conta dos baixos investimentos em infraestrutura. O nosso parque de equipamentos é de primeira linha em muitas áreas. Mas o problema é que os equipamentos chegam e encontram uma estrutura elétrica, hidráulica e predial muito comprometida. Portanto, neste momento, está na hora de o país investir de modo maciço nessa recuperação estrutural dos laboratórios públicos de pesquisa.
UFRJ Plural – E como a UFRJ pode tentar garantir, com os recursos que possui, o crescimento com qualidade dos seus programas de pós-graduação, que alcançaram a marca de 100 cursos em 2012?
Debora Foguel – Estamos dando todo o apoio possível para que isso aconteça. Mas temos limitações de recursos. Não posso deixar de lembrar que a USP, nos últimos três anos, fez editais internos com aporte de 70 milhões de reais de recursos próprios em cada um deles. Esse seria o meu sonho. A USP pôde elaborar editais privilegiando a destinação de recursos para programas envolvendo várias unidades e campos do conhecimento. Não chegamos nesse nível ainda, mas temos recebido total apoio da Reitoria para nossas iniciativas.
UFRJ Plural – Dê um exemplo.
Debora Foguel – O Ministério da Ciência e Tecnologia identifica a nanotecnologia como importante para o país. De fato, ela é o futuro em várias áreas, como a Engenharia, a Química, a Física, não deixando também de ser um desafio para os colegas das humanidades em função do debate necessário sobre a aplicação ética dessa nova tecnologia. Recentemente, o Ministério criou o SisNano, um sistema nacional de laboratórios para pesquisa e inovação em nanociências e nanotecnologias. Fiz uma reunião com os colegas interessados e o reitor Carlos Levi, de imediato, se prontificou a oferecer uma contrapartida em recursos para que esse sistema possa alavancar as nossas pesquisas numa área de caráter interdisciplinar e fortemente integradora. Esse é um bom exemplo do compromisso que temos com o fortalecimento dos nossos programas de pós-graduação.