UFRJ Plural - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Entrevista

Drogas: a urgência da prevenção
Coryntho Baldez

Foto: Bruna Aguiar Professora Elza Rocha e Luisa Wolff, Bolsista do
projeto de extensão do grupo de prevenção às drogas

Hoje, o Brasil tem um milhão de usuários de crack – o maior número entre todos os países – e fica atrás apenas dos Estados Unidos no consumo de cocaína. No caso do álcool, a estimativa de dependentes já alcança mais de 12% da população. Diante do evidente aumento do uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas, a prevenção primária deve ser cada vez mais difundida e adotada no país, na opinião de Elza Rocha Pinto, professora adjunta do Instituto de Psicologia da UFRJ.

“É um modelo que se baseia na redução de danos e cujo foco é atuar antes que o problema da droga se instale”, explica a doutora em Saúde Pública pelo Instituto Fernandes Figueira (IFF−Fiocruz). Ela critica o enfoque repressivo na guerra às drogas – “que não teve bons resultados” – e a política de internação compulsória que acontece no Rio de Janeiro. “Quem trabalha na clínica sabe que não adianta forçar a pessoa a parar de usar a droga. Ela precisa escolher se tratar”, afirma.

Nesta entrevista, a docente também fala sobre o projeto que desenvolve com alunos da rede pública no Complexo da Maré, com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão (PR-5) da UFRJ, para retardar o uso e evitar o abuso de drogas.

Elza é a coordenadora da "1ª Semana de Prevenção do Uso Abusivo de Drogas", que acontece entre 24 e 28 de junho, no campus da Praia Vermelha. Com o evento, espera sensibilizar alunos, professores e profissionais de diversas áreas para a necessidade da prevenção primária – que considera o melhor antídoto contra as diversas faces da violência social produzida pelas drogas.

UFRJ Plural – O uso de drogas lícitas e ilícitas aumentou nos últimos anos? Há dados que comprovam esse fenômeno?

Elza Rocha – Uma pesquisa recente, que foi coordenada pelo professor Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), constatou alguns dados preocupantes. Por exemplo, segundo o estudo, existem cerca de 2,6 milhões de usuários de cocaína e crack no Brasil. Desse total, quase a metade apresenta dependência e mais de um milhão usam crack. Houve um aumento expressivo do uso dessa droga. Nenhum outro país tem um milhão de consumidores de crack atualmente. Em relação à cocaína, o Brasil é o segundo maior consumidor do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Antigamente, o Brasil era uma rota de passagem da cocaína. Hoje, 60% da produção que vem da Colômbia, Bolívia e Peru ficam em nosso território. Há uma grande oferta da droga, combinada com o aumento da renda do brasileiro e a redução do preço da cocaína.

UFRJ Plural – A pesquisa faz referência a outras drogas?

Elza Rocha – Em relação à maconha, o estudou constatou que houve um aumento da proporção entre usuários adultos e adolescentes. Em 2006, havia um adolescente usuário para cada adulto. Em 2012, essa proporção aumentou para 1,4 adolescente por adulto. Em relação ao álcool, o número de dependentes representa 12,3% da população brasileira, de acordo com pesquisa feita em 2006 pelo Cebrid [Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas], que funciona no Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp.

UFRJ Plural – Diante desses dados, pode-se dizer que a política proibicionista e de criminalização dos usuários de drogas fracassou?

Elza Rocha – É verdade. Vimos que não deu resultado todo o esforço dos Estados Unidos para destruir as plantações de cocaína em países como Colômbia e Bolívia. No início do século XX, a Lei Seca já havia fracassado ao tentar inibir o consumo de álcool. Não adianta combater o consumo da droga se não forem modificadas as condições sociais dos usuários. Esse uso depende da pessoa, do contexto em que ela usa e da própria oferta da droga no mercado. A repressão não funciona, até porque existem várias drogas lícitas a que as pessoas podem recorrer. O que mais mata no Brasil não é o crack, que tem uma mortalidade alta, mas o álcool, que é liberado.

UFRJ Plural – E quais os problemas sociais mais evidentes provocados pelo consumo de drogas lícitas e ilícitas?

Elza Rocha – O grande problema que temos enfrentado é a violência. Há situações de vários tipos, como assaltos, assassinatos, enfrentamentos entre adolescentes, agressões entre familiares, acidentes de trânsito, acidentes de trabalho, entre outras. Existe uma série de problemas derivados do uso de drogas.

UFRJ Plural – O custo social e econômico do consumo abusivo de drogas é alto?

Elza Rocha – Os usuários que configuram a categoria do “abuso”, segundo critérios já estabelecidos, representam cerca de 20 a 25% da população brasileira. Tal grupo é responsável por uma série de problemas que atingem a área de saúde do trabalhador, provocando acidentes de trânsito ou sendo vítimas de violência, que se manifesta, por exemplo, em agressões, homicídios e suicídios. Os pronto-socorros dos hospitais gerais oferecem um triste panorama dessa realidade. Quanto ao custo econômico, há um estudo que aponta que os gastos apenas com as consequências e prejuízos do alcoolismo alcançam o equivalente a 7% do PIB. Se fizermos os cálculos, constataremos que o valor gasto para enfrentar os danos com o alcoolismo é bastante superior a todo o orçamento do Ministério da Saúde.

UFRJ Plural – A mídia tem alardeado uma suposta epidemia de crack que tem servido para justificar medidas polêmicas, como a internação compulsória para tratamento psiquiátrico de crianças e adolescentes que vivem na rua. É o que vem acontecendo, por exemplo, no Rio de Janeiro. Essa política de confinamento resolve?

Elza Rocha – Tal como ela está sendo proposta não faz sentido. Quem trabalha na clínica sabe que não adianta forçar a pessoa a parar de usar a droga. É preciso que haja um envolvimento da pessoa com seu tratamento.  Ela precisa escolher se tratar. Além disso, o tratamento precisa ser multidisciplinar. Não pode ser apenas medicamentoso ou psicológico. O abuso da droga é causado por várias causas, de ordem psicológica, social e cultural. Existem vários fatores de risco, como o ambiente familiar desajustado, a falta de diálogo, a pobreza, a pressão, o desemprego, as violências de diversas ordens. Se não houver mudança nas variáveis que levaram o usuário ao abuso, o tratamento não vai adiantar. E na primeira oportunidade ele volta a recorrer às substâncias.

UFRJ Plural – E qual seria, então, a motivação dessa política?

Elza Rocha – Acredito que é uma medida que está sendo tomada visando à organização da cidade para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.

UFRJ Plural – Como? O objetivo seria então “limpar” as ruas e esconder um problema social?

Elza Rocha – Exatamente. A intenção é tirar o usuário da rua. Isso não vai dar certo. Primeiro, porque não é uma escolha de livre vontade. Segundo, porque o sistema não está preparado. Não existem centros especializados em quantidade suficiente. São poucos os que estão capacitados e que possuem equipes multidisciplinares para tratar de dependentes.

UFRJ Plural – E como a senhora avalia o programa “Crack, é possível vencer”, do governo federal?

Elza Rocha – É interessante, muito bem-feito. Ele está, por exemplo, oferecendo cursos de capacitação, em todos os níveis, para médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais. E também para lideranças comunitárias que se proponham a fazer um tipo de atendimento em relação ao usuário. Mas isso mal começou. Vemos comunidades terapêuticas que funcionam precariamente, sem a presença sequer de um psicólogo ou de um assistente social.

UFRJ Plural – Hoje, que medidas seriam fundamentais para o Brasil começar a tratar o consumo de drogas como uma questão de saúde pública?

Elza Rocha – Não é muito a minha área, mas considero como medida básica a adoção de uma política consistente voltada para a educação. O estudo do professor Laranjeira mostrou que a primeira experiência de uso de drogas, seja do álcool, da cocaína ou da maconha, acontece entre os 12 e 17 anos. Ou seja, abrange a idade correspondente ao ensino fundamental e ao ensino médio. Portanto, a prevenção precisa ser dirigida e realizada nas escolas. E também estendida a outras instituições que podem desenvolver um trabalho de caráter preventivo, como igrejas, associações comunitárias e clubes, que possibilitem ao jovem a chance de se envolver em atividades artísticas ou esportivas. Esse programa do governo é bom, mas ainda falta muito para que saia do papel.

UFRJ Plural – E qual a sua opinião sobre a liberação do uso das drogas?

Elza Rocha – Pessoalmente, sou favorável à descriminalização da maconha e, inclusive, à sua liberação A criminalização por si não diminui a demanda, e acaba gerando outros problemas. Porém, não faço militância, a não ser promover discussões sobre o tema das drogas, seus efeitos e consequências na mente e no corpo. Acho que, antes de qualquer ação do governo no sentido da liberação, é necessário um profundo debate entre diversos segmentos da sociedade. Essa discussão precisa ser longa e séria,  envolvendo informações de caráter científico. O enfoque repressivo na guerra às drogas não teve bons resultados. O Brasil, por exemplo, deixou de ser rota de passagem para se transformar em mercado consumidor.  Então, não adianta tentar combater as drogas através de uma política repressiva ou de abstinência. É preciso aceitar que elas vieram para ficar. E tentar outras intervenções que possam construir uma relação menos destrutiva entre o usuário e a droga, dentro de uma perspectiva de redução de danos.

UFRJ Plural – Como tem sido a experiência do projeto de prevenção com adolescentes do Complexo da Maré?

Elza Rocha – Na Maré, começou este ano, nos Cieps Operário Vicente Mariano e César Pernetta. Mas ele já vinha sendo desenvolvido em uma escola da Tijuca. A ideia do projeto é tentar trabalhar a prevenção primária, cujo foco é atuar antes que o problema da droga se instale. Ou seja, trabalhamos com adolescentes na faixa entre 11 e 16 anos. Nesse período, o adolescente está começando a modificar valores que, até então, tinham sido incorporados e vivenciados no ambiente familiar. É exatamente neste momento em que ele rompe com alguns valores e incorpora outros que a prevenção pode ser feita de uma forma mais eficaz.

UFRJ Plural – Como é feita essa prevenção?

Elza Rocha – Existem vários modelos, inclusive o proibicionista, que busca impor a abstinência como meta a ser alcançada. Mas sabemos que não adianta colocar uma meta ideal, porque a pessoa, durante a sua vida, vai conviver com a droga. O que importa, como já disse antes, é a relação que se estabelece com ela. Fazer o uso do álcool no fim de semana, ou numa comemoração, não torna a pessoa dependente. Além disso, se a pessoa obedecer a alguns princípios de autocuidado durante o consumo de bebida alcoólica, ela não vai colocar a sua vida nem a dos outros em risco. Isso funciona para todas as drogas.

UFRJ Plural – E quais as características básicas desse modelo preventivo?

Elza Rocha – A prevenção que organizamos se baseia no modelo da redução de danos. O que pretendemos não é que o jovem deixe de usar, mas que retarde ao máximo o uso. Na nossa experiência de atendimento, notamos que existem crianças na faixa de 12 e 13 anos que começam a consumir álcool e fumam. Os alunos de ensino fundamental de escolas públicas vivem num ambiente de baixa renda. E por uma série de circunstâncias são, muitas vezes, obrigados a conviver com familiares que usam drogas, e até as traficam.

UFRJ Plural – O projeto possibilita quais níveis de intervenção nessa realidade?

Elza Rocha – Vários. Por exemplo, aquele ligado à transmissão das informações científicas sobre os efeitos que a droga produz no organismo e no cérebro das pessoas. Mas não só isso. Num segundo momento, o mais importante é criar condições para o jovem se afirmar com um autoconceito positivo e confiar nas habilidades que pode desenvolver. O adolescente experimenta a droga por curiosidade ou porque os outros colegas fazem uso e ele não quer ser diferente. Esse é um momento em que trabalhamos a própria personalidade dos adolescentes.

UFRJ Plural – Como esse trabalho é desenvolvido?

Elza Rocha – Nessa fase, organizamos jogos e dramatizações, junto com os professores de artes das escolas. Oferecemos diversos canais de expressão ao adolescente para que ele não tenha que recorrer à droga, tais como esporte e cultura. No final do projeto, temos as chamadas oficinas de prevenção. O objetivo é levar os alunos a se transformarem em agentes multiplicadores da prevenção, através de materiais e ferramentas que eles mesmos produzem, como cartazes, murais, peças de teatro e blogs. Nós os incentivamos a levar toda essa produção para outros locais, como clubes, associações e igrejas. É importante frisar que os diretores dos dois Cieps da Maré nos receberam de braços abertos e estão dando todo o apoio ao projeto. Estamos trabalhando diretamente com professores e monitores

UFRJ Plural – Por fim, qual a sua expectativa em relação à "1ª Semana de Prevenção do Uso Abusivo de Drogas"?

Elza Rocha – Em primeiro lugar, buscamos sensibilizar alunos de diversas universidades, professores e até mesmo o Instituto de Psicologia da UFRJ. Por incrível que pareça, não temos mais uma disciplina a respeito de drogas e prevenção. É importante chamar a atenção para o problema no momento em que o aumento do consumo de diversas drogas é um fato. Precisamos urgentemente difundir a importância de intervenções que possam levar as pessoas a retardar o consumo de drogas, e, quando forem usá-las, saibam controlar o consumo. Ou seja, mantenham com elas uma relação de equilíbrio e evitem os malefícios do seu uso abusivo. Outro objetivo do evento é mobilizar o interesse de profissionais para essa área de atuação. E não apenas de profissionais de psicologia, mas de enfermagem, medicina, assistência social, educação, entre outros ramos. Essa é uma questão de importância máxima. Se não difundirmos e trabalharmos a prevenção primária, teremos sempre que conviver com a violência produzida pelas drogas, tanto interna, que se volta contra a saúde dos indivíduos, como externa, que atinge a sociedade em geral.