Entrevista
Igreja: entre o luxo e as catacumbas
Coryntho Baldez
A renúncia do Papa Bento XVI, em 28 de fevereiro, surpreendeu o mundo e expôs a secreta disputa pelo poder no Vaticano. Não foi menor o espanto com a escolha, para sucedê-lo, de um não europeu, o argentino Jorge Mario Bergoglio, 76 anos, arcebispo de Buenos Aires.
“Bento XVI não renunciou porque estava velho e cansado. Uma das hipóteses é que ele pretendia reformar a Cúria Romana, e não conseguiu”, afirma o sociólogo e ex-dominicano Ivo Lebauspin, professor aposentado da Escola de Serviço Social (EES) da UFRJ.
Nesta entrevista ao UFRJ Plural, ele revela que havia um sentimento no conclave que elegeu o novo Papa de que a Igreja – atingida por denúncias de corrupção no Banco do Vaticano e sucessivos casos de pedofilia – precisava mudar. E os cardeais que escolheram Bergoglio acreditam que um Papa da América Latina e crítico da suntuosidade do Vaticano possa comandar uma possível reforma da Cúria Romana.
Por seu perfil conservador, nada indica que Jorge Bergoglio enfrentará temas espinhosos para a Igreja, como a milenar discriminação da mulher e o uso de preservativos nas relações sexuais. Mas a sua opção por uma “Igreja pobre”, a escolha do nome Francisco e o respeito que manifestou às conferências episcopais – desprezadas pelo antecessor – são sinais de renovação animadores, avalia Lebauspin, que também é pesquisador do Iser Assessoria, Organização Não Governamental (ONG) que promove pesquisas e atividades de formação para comunidades eclesiais de base, entre outros movimentos sociais.
UFRJ Plural – Que forças internas da Igreja são essas que, depois de 600 anos, levaram à renúncia de outro Papa?
Ivo Lebauspin – A renúncia de Bento XVI foi uma surpresa geral. Primeiro, porque não é comum. E este era um papa conservador, que foi presidente da Congregação para a Doutrina da Fé em praticamente todo o período do pontificado de João Paulo II, de 1981 a 2005. A partir de então, tornou-se papa, dando continuidade ao que já fazia.
UFRJ Plural – E o que estaria por trás da renúncia de Bento XVI?
Ivo Lebauspin – O Papa não renunciou porque está velho e cansado. Tem algo mais. E uma das hipóteses é que ele pretendeu reformar a Cúria Romana, o conjunto de ministérios da Igreja mundial, e não conseguiu. Segundo estudiosos, a Cúria domina o Vaticano há mais de mil anos. João XXIII foi uma exceção, passando por cima da Cúria com o Concílio Vaticano II. O Papa Paulo VI também se deixou controlar inteiramente, mas a Cúria tem um poder muito grande, típico das grandes burocracias.
UFRJ Plural – Mas Bento XVI pretendeu, de fato, fazer uma reforma da Cúria?
Ivo Lebauspin – O que consta é que ele teria tentado, entrando em conflito com o secretário de Estado do Vaticano, Tarcisio Bertone. Em situação normal, o Papa o destituiria e colocaria outro no lugar. Mas, por alguma razão, não conseguiu tomar essa medida.
UFRJ Plural – As denúncias envolvendo casos de pedofilia e corrupção no banco do Vaticano podem ter relação com isso?
Ivo Lebauspin – Sim, podem. Uma das revelações do chamado “Vatileaks” é o clima de conflito interno no Vaticano entre aqueles que, na hierarquia, vêm imediatamente depois do Papa. Não era um conflito entre posições progressistas e conservadoras, mas conflitos de poder pelo controle interno da Cúria.
UFRJ Plural – Antes de renunciar, Bento XVI recebeu um dossiê, que já está nas mãos do Papa Francisco. Existe algum indicativo sobre o conteúdo desse dossiê secreto?
Ivo Lebauspin – Até tentei saber para além dos jornais, mas não consegui. O que aparentemente consta do dossiê são os casos de pedofilia, de corrupção e os conflitos internos entre grupos. Mas o que é interessante nisso tudo? É o fato de Bento XVI ter nomeado três cardeais para investigar as denúncias que vazaram para a mídia. Eles concluíram o documento e, mesmo que não haja intenção de torná-lo público, passa a ser um subsídio para o novo Papa tomar providências. Quem conhece Ratzinger não esperaria algo do tipo. Dizem que ele também foi bastante sério no enfrentamento dos casos de pedofilia, para que os fatos fossem esclarecidos e assumidos pela Igreja.
UFRJ Plural – Vamos falar um pouso sobre o novo Papa. A eleição de um pontífice da Argentina, um país fora do circuito de poder tradicional da Igreja, pode significar uma maior abertura da instituição?
Ivo Lebauspin – Acho que sim. É o primeiro Papa não europeu da história da Igreja, uma absoluta novidade. É uma pessoa que vem do Sul, da América Latina, e não é do país mais rico do continente, que é o Brasil. Isso tudo tem um significado forte. Também é bom lembrar que todos os cardeais que elegeram o novo Papa foram nomeados por João Paulo II ou por Bento XVI. Portanto, eram fundamentalmente conservadores e escolheram alguém da América Latina, que é alvo de preconceitos por causa do envolvimento da Igreja com a Teologia da Libertação, com a luta pela transformação social.
UFRJ Plural – Embora não se alinhe à Teologia da Libertação, o novo Papa faz um discurso de proximidade com os pobres e valoriza a simplicidade. Onde se situa o elo do Papa Francisco com o povo?
Ivo Lebauspin – É bom mesmo situar essa questão. Primeiro, ele vem da Igreja argentina. E o episcopado argentino não tem muito boa fama. Durante a ditadura militar no país, uma das que mais promoveram assassinatos, torturas e desaparecimentos, o episcopado argentino não tomou uma posição coletiva sobre essa ditadura. Se compararmos com o Chile e o Brasil, países em que a Igreja tomou uma posição clara de condenação à ditadura civil-militar, o caso argentino chama atenção. Apenas quatro bispos se posicionaram claramente contra a ditadura, e um deles inclusive foi assassinado. Na base da Igreja argentina, existiam padres e leigos que se posicionaram contra a ditadura e em favor dos direitos humanos. Mas é do episcopado conservador argentino que vem Jorge Mario Bergoglio.
UFRJ Plural – E qual foi o seu papel?
Ivo Lebauspin – Como disse Adolfo Pérez Esquivel, não se pode dizer que o cardeal Bergoglio tenha sido colaborador da ditadura. Isso é falso. A crítica que se pode fazer é que ele foi omisso. No período da ditadura, Bergoglio era um padre provincial dos jesuítas, não era ainda bispo. O que consta, até pelos testemunhos do bairro em que atuava, é que ele sempre foi um homem simples. Um homem que recusou o palácio episcopal depois de se tornar bispo, foi morar num pequeno apartamento, fazia a sua própria comida, andava de ônibus e frequentava uma favela na periferia de Buenos Aires. É um bispo que fez a opção de viver próximo dos pobres, sem usar as facilidades que muitos bispos utilizam, como uma boa casa, empregadas, carro, entre outras.
UFRJ Plural – Qual a inspiração dessa conduta do Papa?
Ivo Lebauspin – É muito mais na linha da Igreja pobre que se discutiu na época do Concílio Vaticano II. Há o famoso pacto das catacumbas, feito pelo bispo brasileiro Dom Hélder Câmara e mais 40 bispos na época do Concílio, que era o de viver pobremente, recuperar a Igreja primitiva. Pretendeu-se que a proposta fosse assumida pelo conjunto do episcopado, mas apenas um grupo pequeno de bispos de vários lugares do mundo assumiu esse compromisso. Essa ideia de fazer a Igreja voltar a ser pobre, abandonando o fausto do Vaticano, era muito forte na véspera, durante e depois do Concílio. O próprio Dom Hélder sugeriu ao Papa Paulo VI, de quem era muito amigo, que fosse morar na periferia e abandonasse o Vaticano, o que não aconteceu.
UFRJ Plural – E quais são os sinais que o Papa vem dando de que o seu pontificado pode trilhar um caminho menos suntuoso?
Ivo Lebauspin – Há vários sinais desde o primeiro minuto em que apareceu como Papa. Ele tem falado, por exemplo, que é bispo de Roma, e não o Papa. Em seguida, disse que a Igreja de Roma preside as demais igrejas na caridade. Essa é uma frase de Inácio de Antioquia, que era um padre da Igreja do século II muito valorizado. Esse é um sinal de que estamos mudando de perspectiva. João Paulo II e Bento XVI eram papas que tinham o poder e mandavam nas igrejas do mundo inteiro. O Papa Francisco, ao afirmar que presidirá a Igreja na caridade, está passando a ideia de que vai respeitar a colegialidade dos bispos, as suas conferências nacionais, sem intervenções, como acontecia. Outro sinal importante é que, depois de muito tempo, foi escolhido um Papa que pertence a uma ordem religiosa. E na sua missa inaugural, Francisco convidou o presidente da União dos Superiores Religiosos do mundo para participar. Isso tem um significado importantíssimo. No pontificado de João Paulo II, por exemplo, o presidente dessa instituição pediu, durante 10 anos, audiências com o Papa e não conseguiu.
UFRJ Plural – As conferências nacionais de bispos foram um avanço para a Igreja?
Ivo Lebauspin – Certamente. A primeira conferência nacional do mundo foi no Brasil, na década de 1950, criada por Dom Hélder Câmara. A partir daí, inúmeras outras foram organizadas em diversos países. O Concílio Vaticano II, ao torná-las um elemento fundamental da estrutura da Igreja, apontava para um governo colegiado, que não se restringia apenas ao Papa. Isso foi totalmente abandonado no pontificado de João Paulo II e Bento XVI, ou seja, nos últimos 30 anos.
UFRJ Plural – Por quê?
Ivo Lebauspin – João Paulo II e Bento XVI consideravam as ordens religiosas elementos superados na vida da Igreja, algo muito estranho porque, até o final do pontificado de Paulo VI, elas sempre foram muito valorizadas. Esses dois papas passaram a dar importância aos novos movimentos religiosos que surgiram neste período, como o Neocatecumenal, o Sodalício, a Renovação Carismática, e outros mais antigos, como o Opus Dei. Eles deixaram de valorizar as ordens religiosas, possivelmente, porque elas possuem certa autonomia frente ao papado. É claro que o Papa sempre pode interferir numa ordem religiosa, como fez João Paulo II com os jesuítas para torná-los mais conservadores. Mas há certo limite para isso.
UFRJ Plural – Sabe-se que o número de evangélicos na América Latina passou de 16% para 38% da população entre 1998 e 2009. A escolha de um papa jesuíta, uma ordem com tradição missionária, tem algo a ver com uma tentativa de fazer frente ao crescimento do protestantismo?
Ivo Lebauspin – Acho que pesou muito mais na escolha a situação de desmoralização em que a Igreja se encontra, com os escândalos de pedofilia e de corrupção no banco do Vaticano. Este me parece o problema principal. Muitas coisas ditas na reunião principal que precede o Conclave começaram a vazar. E consta que o tema principal foi o poder e o domínio da Cúria Romana sobre o pontificado e, portanto, sobre a Igreja mundial. A urgência da maioria dos cardeais é fazer uma reforma da Cúria. O sentimento é de que não dá para continuar do jeito que está porque isso está destruindo a Igreja.
UFRJ Plural – O crescimento do protestantismo teria relação com essa atuação da Igreja?
Ivo Lebauspin – Houve, de fato, um crescimento enorme do número de evangélicos, sobretudo na América Latina. Certamente, a linha de ação de João Paulo II e de Bento XVI foi muito fechada. E há um fato histórico dentro da Igreja, ressaltado por frei Leonardo Boff, que é a marginalização da mulher no último milênio. A mulher pode fazer muita coisa e trabalhar dentro da Igreja, mas não tem nenhum direito. Além da questão da mulher, a atuação da Igreja é muito fechada em relação ao homossexualismo, aos direitos sexuais reprodutivos, ao uso de preservativos nas relações sexuais, entre outros temas.
UFRJ Plural – Há alguma chance de a Igreja, com o Papa Francisco, entrar em sintonia com esses valores do mundo contemporâneo?
Ivo Lebauspin – É bom dizer que, pelo menos num primeiro momento, nenhum outro cardeal diria que é a favor do aborto ou da união gay. Essa é uma posição oficial e tradicional da Igreja. Estamos na expectativa de como o Papa vai se comportar daqui para frente. A posição retrógrada da Igreja nessas questões é certamente um dos fatores que está afastando as pessoas da Igreja católica. Não dá para ficar numa Igreja que não tem sensibilidade para os fiéis. Alguns não migram para outras crenças, mas simplesmente deixam de participar da instituição. Mas, em parte, é verdade que os evangélicos estão crescendo por causa do conservadorismo da Igreja e, de outro lado, também pelo seu trabalho missionário bem-sucedido.
UFRJ Plural – E em relação à Cúria Romana, o Papa terá como enfrentar o seu poder?
Ivo Lebauspin – Em recente debate, Dom Tomás Balduíno, bispo emérito e ainda muito atuante, disse que estamos vivendo um momento excepcional. Ele avalia que Bento XVI, ao renunciar, expôs todos os pecados da Cúria publicamente. Era a última coisa que ela queria, pois costuma trabalhar em segredo. O que a mídia divulgou sobre os conflitos da Cúria nos dias seguintes à renúncia é impressionante. Por enquanto, o Papa manteve todos nos seus cargos porque deve estar fazendo os seus contatos. Mas acredita-se firmemente que Francisco fará uma mudança na Cúria Romana. Agora, até onde vai essa reforma iremos ver nos próximos meses.
UFRJ Plural – Será que ele avançaria para um novo Concílio?
Ivo Lebauspin – Dom Tomás Balduíno e Leonardo Boff têm dito que, ao escolher o nome Francisco, o novo Papa fez a opção por um projeto de Igreja que se opõe ao projeto que vigorou nos últimos 30 anos. E essa escolha pressupõe retomada da via aberta pelo Concílio Vaticano II, que foi massacrado nas últimas décadas. Não é necessário um novo Concílio. Ele falou não apenas em uma Igreja dos pobres, mas em uma Igreja pobre, o que significa uma ruptura com a visão da Igreja conservadora. Inúmeros sites católicos conservadores estão enfurecidos com a escolha de Jorge Mario Bergoglio. Esse é o melhor sinal. Podemos não saber se ele é avançado, mas temos a certeza de que não é o Papa que os conservadores esperavam.