Saúde e bem-estar
Automedicação: problema atinge quase metade da população brasileira
Fabrício Nogueira
Segundo estudo realizado pela Revista de Saúde Pública (2004), da Universidade de São Paulo (USP), cerca de 80 milhões de brasileiros são adeptos da automedicação. Para o professor Lucio Mendes Cabral, diretor da Faculdade de Farmácia (FF) da UFRJ, o maior risco é o desconhecimento por parte do usuário sobre os efeitos colaterais e os malefícios que um medicamento, usado sem a orientação de um profissional, pode trazer para a saúde.
“Muitas vezes, a pessoa acha que por indicação de um vizinho, conhecido ou até mesmo de uma propaganda, veiculada de uma forma não muito ética nos meios de comunicação, tem a possibilidade de utilizar o mesmo medicamento e obter a mesma resposta”, comenta Cabral, que é pós-doutor em Tecnologia Farmacêutica pela Universitá La Sapienza, em Roma, na Itália. Segundo ele, mesmo que a indicação terapêutica para o paciente fosse exatamente a mesma que o médico identificou para o outro, entre duas pessoas podem existir variabilidades genéticas e físicas, o que por si só já determinaria uma resposta diferenciada para o acompanhamento médico que se faria necessário.
Efeitos colaterais
O doutor ressalta que um medicamento traz, junto com os resultados terapêuticos desejados, uma série de efeitos colaterais. Por mais que para a média da população exista um determinado medicamento que seja até considerado seguro, é possível que certos pacientes tenham uma resposta diferenciada e apresentem uma reação bastante severa. “Não existem medicamentos sem efeitos colaterais. Um exemplo é a aspirina. Pode-se tomá-la em doses abaixo daquela recomendada para a ação anti-inflamatória e analgésica, buscando melhorar algum processo de tromboembolia, e o efeito colateral pode ser o aumento das chances de um acidente vascular cerebral”, afirma o professor.
Questão cultural
Na opinião de Lucio Cabral, a automedicação é uma questão cultural. Para ele, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde e à educação faz com que a automedicação prolifere de modo mais intenso onde existe essa carência. “Se houvesse um serviço de assistência primária à saúde bastante eficiente, como o médico de família, por exemplo, com certeza iria preferir consultar o meu médico a me automedicar”, frisa. No entanto, o diretor da Faculdade de Farmácia adverte que a assistência primária pode ser feita em outros níveis, passando pela assistência farmacêutica ou de outros profissionais da área da saúde.
Legislação
Conforme a Instrução Normativa nº 10 (agosto/2009), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), podem ser vendidos sem prescrição os medicamentos fitoterápicos, os administrados por via dermatológica e os sujeitos à notificação simplificada. Para Lucio Cabral, isso é questionável, porque dificilmente vai existir um medicamento que seja completamente seguro. Mas, por uma questão de avaliação de risco sanitário, conclui-se que esses produtos não apresentam risco relevante para a saúde da população a ponto de terem que passar pela triagem de um profissional farmacêutico na hora de sua compra.
Outros produtos exigem a apresentação do receituário médico obrigatório. Porém, isso é um problema, segundo o doutor. “Muitas drogarias não exigem a apresentação do receituário e existem medicamentos cuja retenção de receita é obrigatória. Se os farmacêuticos atendessem às pessoas, orientando-as, avaliando a prescrição médica e coibindo a venda de medicamentos sem prescrição, a automedicação, com certeza, diminuiria muito, porque a venda é feita na farmácia, não tem outro lugar para conseguir um medicamento sem o acompanhamento do profissional de saúde. Falta uma presença mais efetiva dos farmacêuticos nesses pontos de assistência à saúde”, aponta.
Papel da universidade
Na análise do diretor da FF, o papel da universidade como formadora na questão da prescrição e venda de medicamentos é fundamental, seja na medicina, enfermagem, farmácia ou qualquer outro curso da área de saúde. “Todo profissional de saúde precisa ter dentro da sua grade curricular informações que, mais do que formar tecnicamente, formem eticamente, de maneira a trabalhar como um cidadão. Se preparamos um farmacêutico de modo que possamos acreditar que o papel dele dentro de uma farmácia é de um agente de saúde, já vamos modificar bastante esse perfil”, assinala Lúcio Cabral.
Campanha contra a automedicação
Sobre o decreto do governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que instituiu a “Semana de Conscientização e Combate à Automedicação”, campanha que será constituída por palestras de esclarecimentos à população, distribuição de folhetos informativos e explicativos nas redes de escola pública e de saúde, além de ser veiculada em emissoras de rádio e televisão, o professor acredita que ele contribui porque tem um viés cultural. Mas somente isso não é suficiente. “É necessário conscientizar que o medicamento tem riscos e sempre apresenta a possibilidade de efeitos colaterais. Alguma coisa que pode ser inócua para um pode levar até ao óbito de outra”, sentencia.
Sistema Único de Saúde (SUS)
Lúcio Cabral assegura que a estrutura do SUS é excelente, só precisa virar realidade. Para ele, o que deveria ser feito agora é efetivá-lo, fazer o projeto deixar de ser teoria. “Nós temos profissionais muito competentes trabalhando nessa área, propondo modelos e ideias para melhorar e aumentar a efetividade do SUS, mas, antes disso, temos que fazer o mínimo, a proposta inicial para o sistema de saúde funcionar. Somente assim o país teria uma melhora excepcional. Lógico que se poderia pensar em outras formas de atendimento, de estrutura. Porém, antes de chegar a isso, fazer o SUS acontecer é importante”, defende.
Assistência primária de saúde
O doutor declara que não é papel de um hospital de grande porte dar esse atendimento básico. “Imagina, por exemplo, se eu tivesse que ir ao Miguel Couto – Hospital municipal do Rio de Janeiro, localizado no Leblon – para ser atendido, porque estou com uma dor de cabeça ou dores abdominais, algo que não tem tanta gravidade. Uma triagem preliminar já poderia direcionar para um atendimento. Só que isso tem que ser feito por um profissional da saúde. Enquanto essa assistência básica não acontece, cresce o estímulo à automedicação”, argumenta o professor.
Lúcio Cabral conclui que as principais causas desses problemas de saúde pública no Brasil são decorrentes de más gestões. “Enquanto não existir vontade pública, vontade de um gestor querer fazer as coisas se modificarem, ter um comprometimento maior com a população, que é o seu cliente e o seu patrão, em vez de meramente ganhar prestígio político com as suas ações, a situação não vai mudar.” E acrescenta: “Apesar de termos um bom sistema de saúde, ainda há muita coisa a fazer. Na verdade, essa desestruturação de uma forma geral precisa ser corrigida, principalmente com foco na estrutura de assistência básica de saúde”, completa.